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(foto: Creative)

Sabemos que a comida é a fonte de energia para o corpo humano, mas as pessoas estabelecem uma relação com a mesa que vai muito além da nutrição. Por que isso acontece?
Por Eugenio Mussak

O trânsito estava pesado como acontece normalmente nos fins de tarde em São Paulo. Sozinho no carro e ansioso por chegar em casa, eu procurava alguma companhia alentadora no rádio. Mas as emissoras de música pareciam estar em complô, reprisando sucessos desinteressantes. A de programação erudita estava tocando uma ópera angustiante, e as de notícias repetiam as informações sobre as agruras do tempo e as amarguras da política.

Foi quando encontrei um oásis radiofônico para me proteger: os comentários de um chef de cozinha. István Wessel, com sua fala calma, explicava aos ouvintes a receita de uma salada diferente. Era assim: corte em cubinhos uma maçã verde, uma maçã vermelha e uma cebola roxa. Sobre esses cubinhos, coloque duas colheres de maionese e um pote de iogurte natural. Depois mexa bem, acrescentando uma colher de açúcar, uma pitada de sal e umas folhinhas de dill (endro) fresco.

– É perfeita para acompanhar bife à milanesa, tanto quente quanto frio – explicou o mestre.

Pronto, eu já tinha um objetivo na vida, ou pelo menos uma razão para alegrar aquele fim de dia. Sabia que nossa cozinheira, a Ivonete, havia feito bife à milanesa, e, como eu não tinha almoçado em casa, deviam ter sobrado alguns. Passei, então, no supermercado para estar seguro de que não faltaria nenhum ingrediente para aquele prato simples e cheguei em casa cheio de alegria. De fato, os bifes estavam na geladeira, aguardando um destino nobre.

Abri uma garrafa de sauvignon blanc chileno, coloquei Yo-Yo Ma no som, vesti um avental e fui para a cozinha. Quando a Lu chegou, encontrou um marido feliz. Lá estava eu, no local mais frequentado da casa, que costumamos chamar de “cozinha-de-estar”, onde passamos muito tempo juntos e onde gostamos de receber os amigos. Então saboreamos os bifes da Ivonete, a salada do Wessel e o vinho dos chilenos, alimentando o corpo e a alma.

Aquele era mais um dos deliciosos momentos de comunhão que a mesa proporciona. É sensacional a experiência de comer não tendo como única finalidade a energia dos carboidratos, a estrutura das proteínas e a regulação das vitaminas. É claro que tudo isso é importante. Tão importante para a saúde e para a sobrevivência que a natureza conferiu, ao ato de comer, o sentido do prazer. E a humanidade, à medida que foi se sofisticando, elevou o ato de preparar e consumir o alimento ao estado de arte.

É verdade que comer acalma e torna as pessoas alegres? 

Fome é uma sensação desagradável provocada por hormônios neurotransmissores que se esforçam para manter o corpo em funcionamento apesar da, digamos assim, queda dos níveis de combustível orgânico. Parte dessa sensação é o medo de morrer, pois essa é uma possibilidade real para um organismo que não se alimente. Daí o aumento de estresse, mau humor e dificuldade de concentração.

Então deduzimos que alimentar-se acalma e diminui o estresse. Assim que a pança é forrada, o cérebro produz impulsos até derramar uma porção extra de serotonina pelo organismo, gerando uma sensação de bem-estar quando comemos. Por se tratar de um instinto, tal fenômeno ocorre logo nos primeiros segundos de vida. Duvida?

Veja um bebê e comprove. Toda criança se tranquiliza quando é amamentada. Assim como acontece entre mãe e filho, alimentar-se também é troca contínua entre homem e mundo. Quando comemos, o que antes estava fora agora está em nosso corpo. Isso significa que se alimentar repõe o ser humano no macrocosmo, pois um mundo come o outro.

Repare: o homem planta a comida e a come, a ave come o resto e a elimina, o urubu come o morto e o evacua, o verme come o excreto e repõe o solo. Tudo que é plantado é colhido, tudo que nasce morre. É o ciclo da vida. Todos ingerem um pouco de tudo e o tudo se reintegra por fim, e o que nos resta é um bolinho azul de Terra, assado por um forno em temperatura de 6000 °C chamado Sol. Servido?

E, desde que começamos a nos organizar como espécie, fizemos do ato de comer um momento de trocas. Se trocamos elementos químicos com o planeta, entre nós trocamos elementos emocionais. A mesa é o local onde todos se colocam no mesmo plano, onde os olhares têm mais chance de se cruzarem. Um almoço em família é um momento de reposição de energia amorosa. Um jantar com seu amor é uma liturgia de cumplicidade. E um café da manhã, ainda que sozinho, é o prenúncio das emoções de viver mais um dia. Uma refeição não é apenas uma refeição, é uma cerimônia em que vida será transformada em mais vida.

A gastronomia é a arte suprema do gosto? 

A gastronomia enquanto arte é, provavelmente, a mais completa entre todas. A verdadeira arte é aquela que desperta sensações que não são provocadas pelos órgãos dos sentidos a que, primariamente, se destinam. Várias vezes percebi isso. Ao ouvir Bach eu posso “ver” as ovelhas pastando tranquilas. Já “cheirei” lavandas em um quadro de Paul Cézanne e já “ouvi” o grito do Edvard Munch. A boa arte é assim, surpreendente. Te pega pelos olhos ou pelos ouvidos e te sequestra o corpo inteiro, além da alma, claro.

Pois, dessa forma, a culinária é mais arrebatadora das artes. Um bom prato você vê, cheira, ouve, sente e degusta. Lembro-me dos franceses Anne e Jean Michel, donos de um hotel de cinco quartos chamado Domaine de Mejeans, localizado em uma área rural de Aix-en-Provence, no sul da França. É uma pequena pousada, sim, mas pretende ser muito mais que isso, e consegue seu intento de ser imensa porque tem compromisso com a arte de bem receber e de bem servir à mesa.

Após o desjejum, servido na varanda, composto de café au lait, pães, manteiga fresca e geleias de frutas do quintal, Jean Michel costuma perguntar: “Você virão para o jantar?” “Sim”, respondemos de pronto, pois não há como perder aquele festim. “Ele será servido às 9 em ponto”, alerta. Após um dia de aventuras pela Provence, sentamos à mesa do pequeno refeitório, decorado de forma simples e aconchegante, para iniciar o jantar, que, nesse caso, é mais que um jantar, é uma sinfonia bem orquestrada de sensações.

“De entrada, um caldo de mariscos – sintam o embalo das ondas do mar”, recomendou o chef. “Agora a salada – percebam o frescor das folhas, que foram colhidas jovens em nossa horta”, continuou. “De prato principal, um sea bass que comprei no mercado de Marseille hoje pela manhã. Ainda dá para ouvir os gritos dos pescadores nele.”

A boa culinária é assim, nos toca por inteiro. E não importa se estamos falando da alta gastronomia francesa harmonizada com vinhos bordeaux, ou do virado à paulista servido no mezanino do Mercado Municipal, acompanhado por um chope gelado. O mesmo prazer olfativo que senti ao entrar em um bar corso em Milão e em um restaurante grego em Nova York também experimento no português aqui da esquina que serve um prato feito de comer com muito respeito, e na minha casa, quando chego e sinto o alho misturando-se com a cebola, acariciados pelo azeite em uma frigideira quente.

A boa culinária não é cara nem barata, não é sofisticada ou simples. É apenas culinária: vale-se de bons ingredientes, os combina com inteligência, respeita os temperos e é feita com dedicação e amor. Os pratos traduzem os sentimentos de quem os prepara, como vemos na literatura e no cinema. Em Como Água Para Chocolate, Tita, apaixonada por Pedro, o marido de sua irmã, transmite seu amor pelos pratos que prepara. Não é um filme sobre culinária, mas sobre erotismo.

Em Estômago, o nordestino Alecrim vira referência da baixa gastronomia e, quando comete um crime e vai preso, transforma seu talento culinário em ferramenta de poder para virar comandante na penitenciária. É verdade, não dá para escrever sobre o prazer da mesa sem meter a colher de pau em praticamente todas as esferas da vida.

A culinária é uma técnica, sim – senão, não haveria receitas. Dona Benta existe para propagar a técnica de cozinhar, para que se misturem os ingredientes certos com os temperos adequados. Mas é uma técnica que pode ser elevada à condição de arte. Para tanto, o ingrediente principal não é a receita, é o amor de quem a prepara.

Quando Babette, em A Festa de Babette, gasta sua pequena fortuna para oferecer um festim para seus patrões e seus convidados e é repreendida por sua patroa, que lhe diz que ela agora havia ficado pobre, responde com olhos serenos: “Uma artista nunca é pobre”. É o que vemos em cada cozinha em que se transforma, às vezes sem perceber, a culinária em arte. Cozinheiras e cozinheiros, profissionais ou amadores, sulistas ou nordestinos, franceses ou africanos, empregados ou patrões. Todos são ricos de alma se se derem conta de que são artistas entre as panelas e os ingredientes. Vida Simples, setembro/2010.

Fonte: Vida Simples, setembro/2010, gentilmente enviado pela leitora Ana Luiza de Oliveira.